A verdade de Deus sob ataque

Referência: Filipenses 3.1-11

INTRODUÇÃO

No primeiro capítulo de Filipenses Paulo mostrou a supremacia de Cristo (Fp 1.21). No segundo capítulo ele mostrou a primazia do outro (Fp 2.4). Agora, no terceiro capítulo, Paulo volta sua atenção para a questão da verdade que estava sendo atacada pelos falsos mestres.

Mais do que nunca este texto é atual, oportuno e urgente. Também em nossos dias a verdade de Deus tem sido atacada. Esses ataques não vêm apenas dos insolentes críticos da fé cristã, mas daqueles que se infiltram na igreja, com falsa piedade e perigosas e heresias. Estamos vendo, com profunda dor, a igreja evangélica brasileira deixando o Antigo Evangelho, o evangelho da cruz, para abraçar um evangelho híbrido, sincrético e místico. Um evangelho centrado no homem e não na consumada e bendita obra de Cristo. Precisamos também nos acautelar!

1. A alegria cristã é centrada em Cristo (3.1)
J. A. Motyer diz que a ordem de Paulo dada em Filipenses 3.1: “… alegrai-vos no Senhor”, age como uma ponte entre o que ele ensinou e o que ele está para ensinar. Jesus foi glorificado como Deus, Salvador, Exemplo e Senhor. Portanto, devemos nos regozijar nele. Ele deve ser nosso prazer, nossa mais preciosa possessão e nossa mais intensa ambição.

Assim, depois de falar sobre relacionamentos no capítulo dois, e antes de introduzir o novo assunto, Paulo reafirma para a igreja o tema básico desta carta, a alegria. A alegria cristã não é ausência de problemas nem circunstâncias favoráveis. A alegria cristã está centrada não em coisas ou situações, mas na Pessoa de Cristo. Ele é a nossa alegria. Nossa alegria é cristocêntrica!

Bruce Barton diz que essa verdadeira alegria nos capacita a vencer as ondas revoltas das circunstâncias adversas, porque essa alegria vem de um consistente relacionamento com o Senhor Jesus.

2. A repetição é um poderoso recurso pedagógico (3.1)
Paulo não está trazendo ensino novo, mas reafirmando as mesmas verdades. E ele diz que isso não lhe desagrada, pois sabe da necessidade da igreja ouvir sempre as verdades fundamentais do evangelho. Sabe, também, que isso produz segurança para a igreja. Não devemos correr atrás de novidades, mas firmarmo-nos cada vez mais no Antigo Evangelho. A verdade deve ser o nosso pão diário.

William Barclay corretamente diz que os alimentos essenciais não nos cansam; esperamos comer pão e beber água cada dia da nossa vida. Por isso também devemos escutar sempre de novo a verdade que é pão e água para a vida. Que nenhum mestre se inquiete por voltar renovadamente às grandes verdades básicas da fé cristã.

I. OS FALSOS MESTRES DESMASCARADOS (3.2)

1. A necessidade de cautela acerca dos falsos mestres (3.2)
Por três vezes o apóstolo Paulo repetiu o verbo grego blepete: “Acautelai-vos”. Essa palavra é extremamente forte e sua repetição carrega uma forte ênfase. Ele quer que a igreja mantenha seus olhos abertos e seja vigilante para que esses lobos não entrem no meio do rebanho (At 20.29,30). A heresia tem muitas faces, mas seu veneno é sempre mortal.

2. A necessidade de identificar os falsos mestres (3.2)

O apóstolo Paulo descreve esses falsos mestres, dando-lhes três adjetivos (cães, falsos obreiros e falsa circuncisão), porém, é muito provável que ele esteja falando do mesmo grupo com nuances diferentes. William Hendriksen chega mesmo a ser categórico: “Paulo tem em mente uma única espécie de inimigo, e não três tipos diferentes. Ele se refere apenas a um único inimigo: a mutilação em contraste com a circuncisão”.

F. F. Bruce diz que as pessoas contra quem os gentios cristãos deveriam permanecer em guarda, e a quem Paulo denuncia noutras passagens, usando o mesmo tipo de palavreado contundente empregado aqui, são as que visitavam as igrejas gentias e insistiam em que a circuncisão era condição essencial, indispensável para serem justificados perante Deus.

Esses mestres judaizantes queriam inserir na mensagem do evangelho a obrigatoriedade da circuncisão como condição indispensável para a salvação (At 15.1). Assim, a salvação deixava de ser pela fé somente e passava a depender do esforço humano. Os judaizantes atacavam a doutrina da salvação unicamente pela graça pela base e tratavam de substituí-la por um misto de favor divino e mérito humano, com ênfase sobre este último. Paulo, mesmo sob algemas, não cala sua voz. Ele denuncia e desmascara esses mestres com veemência como já havia feito outras vezes (Gl 1.6-9; 3.1; 5.1-12; 6.12-15; 2Co 11.13).

Que descrição Paulo faz desses falsos mestres?

Em primeiro lugar, os falsos mestres são cães. Ralph Martin diz que os cães eram considerados animais imundos na sociedade oriental. Werner de Boor ainda diz que no antigo Oriente o cão não era o companheiro fiel e amado do ser humano, mas um animal semi-selvagem que vagueava em matilhas, caçando presa aos latidos. É assim que Paulo vê seus adversários metendo o nariz e latindo suas heresias em todas as regiões.

Cães ainda é o termo com que os judeus tratavam os gentios. Eles os consideravam indignos e abomináveis. Eles viam os gentios apenas como combustíveis do fogo do inferno. Agora, porém, Paulo inverte os papéis e se refere aos falsos mestres como cães, ou seja, aqueles que viviam perambulando ao redor das igrejas gentias, tentando “abocanhar” prosélitos, ganhar novos adeptos para seu modo de pensar e viver (Mt 23.15).

No tempo de Paulo esses mestres judaizantes eram como cães, como os animais imundos que vagavam pelas ruas latindo e rosnando a todos que encontravam, revirando o lixo e atacando os transeuntes. Paulo usa essa metáfora para se referir a esses falsos mestres como insolentes, astuciosos e vadios que procuravam se infiltrar nas congregações cristãs para espreitarem a liberdade dos novos crentes (Gl 2.3-8). Warren Wiersbe diz ainda que esses judaizantes mordiam os calcanhares de Paulo e o seguiam de um lugar para outro ladrando suas falsas doutrinas. Eram agitadores e infectavam as vítimas com idéias perigosas.

Em segundo lugar, os falsos mestres são maus obreiros. Eles são obreiros da iniqüidade (Lc 13.27) e obreiros fraudulentos (1Co 11.13). Ralph Martin os chama de emissários gnósticos cristão-judeus, armados com um objetivo propagandístico de arrebanhar os convertidos através do ministério de Paulo, induzindo-os a crer na necessidade de circuncisão.

William Hendriksen diz que eles eram maus obreiros porque, em vez de cooperarem para a boa causa, a prejudicavam. Desviavam a atenção de Cristo e de sua redenção perfeita e a fixavam em rituais ultrapassados e em obras humanas. Eles trabalhavam contra Deus e para desfazerem a obra de Deus. Eles laboravam para o erro e para desviarem as pessoas da verdade. Para esses mestres judaizantes, agir com justiça era observar a Lei e seguí-la em seus múltiplos detalhes e cumprir suas inumeráveis regras e prescrições. Mas Paulo estava seguro de que a única classe de justiça que agrada a Deus consiste em render-se livremente à sua graça.

Em terceiro lugar, os falsos mestres são defensores da falsa circuncisão. A palavra grega para circuncisão é peritome, mas Paulo se recusou a usá-la aqui; em vez disso, usou a palavra grega katatome, usada para descrever a mutilação da carne nos ritos pagãos. Muito embora não havia nada de errado com a circuncisão em si, Paulo sustentou que era errado ensinar que a circuncisão era uma condição indispensável para a salvação. Nesse sentido a circuncisão havia se tornado um rito vazio e sem sentido.

Os mestres judaizantes trocaram a graça de Deus por um rito físico. Eles se vangloriam de uma incisão na carne em vez de uma mudança no coração. Eles cortavam o prepúcio do corpo, porém não do coração. Paulo escarnece dessa falsa confiança deles no rito da circuncisão em vez de confiarem na graça de Deus.

William Barclay diz que esses dois verbos gregos embora muito semelhantes: Peritemnein, que significa “circuncidar”; katatemnein, que significa “mutilar” descrevem duas coisas bem diferentes. Enquanto o primeiro verbo descreve o sinal sagrado e o resultado da circuncisão; este último, katatemnein, que foi o termo usado por Paulo para descrever os falsos mestres, descreve a mutilação própria que se proibia, como a castração e coisas semelhantes (Lv 21.5). Assim, Paulo diz para esses arrogantes hereges que eles não estavam circuncidados, mas apenas mutilados (Gl 5.12). Se tudo o que eles tinham para mostrar era a circuncisão da carne, uma marca física, então, realmente, não estavam circuncidados, mas apenas mutilados. Porque a circuncisão real é a consagração a Deus do coração, da mente, do pensamento e da vida.

A circuncisão foi instituída por Deus como símbolo do seu pacto com Abraão (Gn 17.9,10) e Paulo interpretou a circuncisão como o selo da justiça da fé (Rm 4.11-13) e disse que o sacramento do batismo substituiu esse rito judaico (Cl 2.11-13). O próprio Antigo Testamento já ensinava sobre o princípio espiritual desse rito, falando da circuncisão do coração (Dt 10.16), dos ouvidos (Jr 6.10), e dos lábios (Ex 6.20). O apóstolo Paulo diz que só a circuncisão do coração torna alguém espiritualmente judeu (Rm 2.28,29). Somente aqueles que crêem são filhos espirituais de Abraão (Gl 3.29).

William Hendriksen corretamente exorta: “O conceito de que Deus ainda hoje, reconhece dois grupos favoritos – de um lado a igreja e do outro os judeus – é completamente antibíblico.

II. O POVO DE DEUS IDENTIFICADO (3.3)

Assim como Paulo fez uma tríplice descrição dos falsos mestres, também faz uma tríplice identificação do povo de Deus. Os falsos mestres queriam tornar o cristianismo uma seita judaica. Eles ensinavam que a salvação dependia da circuncisão, anulando, assim, a suficiência do sacrifício de Cristo. Eles pregavam que a graça de Deus não era suficiente para a salvação e que o homem tinha que concorrer e cooperar com Deus nessa obra, circuncidando-se. Paulo refuta vigorosamente essa heresia, mostrando que a verdadeira circuncisão não é aquela feita na carne, mas a circuncisão do coração, operada pelo Espírito Santo de Deus. A igreja, e não os falsos mestres, é que possui a verdadeira circuncisão. Paulo diz: “Porque nós é que somos a circuncisão…” (3.1).
Como Paulo descreve o povo de Deus?

1. O povo de Deus é identificado pela adoração (3.3)
A questão não é adoração, mas a quem ela é prestada e de que forma. A igreja adora a Deus e o faz mediante a ação do Espírito Santo. Toda adoração que não é prestada a Deus é idolatria; toda adoração oferecida a Deus sem a ação do Espírito não lhe é aceitável.

A palavra grega para “adoração”, latreia, bem como o verbo “adorar”, latreuo, têm um uso exclusivamente religioso no Novo Testamento. Ambas enfatizam que não podemos divorciar o culto que prestamos no templo com aquele que prestamos com a vida, fora do templo.

É perfeitamente possível que alguém seja capaz de observar meticulosamente todas as práticas externas da religião e ao mesmo tempo esteja abrigando em seu coração a amargura, o ódio e o orgulho. Os fariseus estavam na sinagoga reprovando a Jesus porque ele curou o homem da mão ressequida no sábado, mas não atentaram para o fato de que na mesma sinagoga eles estavam cheios de ódio tramando a morte de Jesus. Eles pensavam que estavam na sinagoga adorando, mas o culto deles não era movido pelo Espírito Santo.

2. O povo de Deus é identificado pela centralidade da sua vida em Cristo (3.3)
O povo de Deus aprecia plenamente quem Cristo é o que Cristo fez e nele tem toda a sua exultação. O povo Deus não se gloria na carne nem em ritos religiosos, mas em Cristo. O seu prazer, sua vida e sua confiança estão em Cristo. O bendito Filho de Deus é a nossa vida (Fp 1.21), o nosso exemplo (Fp 2.5), o nosso alvo (Fp 3.12-14) e nossa força (Fp 4.13).

Gloriar-se em Cristo é ter nele todo o prazer e deleite. Ele nos é suficiente. Ele nos satisfaz plenamente. O povo de Deus se gloria na cruz de Cristo, isto é, em sua expiação, como a única base para sua salvação. O Senhor é o objeto da exultação dos crentes. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (1Co 1.31; 2Co 10.17).

3. O povo de Deus é identificado pela sua decisão de não confiar na carne (3.3)
Segundo Werner de Boor a palavra “carne” aqui representa toda a religião produzida pessoalmente nas profundezas do coração e do estado de espírito. Essa “carne” pode ser sempre reconhecida no fato de que o ser humano continua voltado sobre si mesmo, confia em si mesmo e se gloria em si mesmo. “Carne” é sua natureza centrada em si mesma. Mesmo quando exerce a moral e a religião, o ser humano fica preso a seu eu, cultiva e gloria-o, até mesmo quando cita o nome de Deus.

Os falsos mestres estavam confiados na carne, em rituais, em cerimônias externas, em realizações humanas. Mas, a igreja é um povo que põe sua confiança em Deus e sua fé na Pessoa bendita de Jesus Cristo. O cristianismo não é aquilo que nós fazemos para Deus, mas o Deus que Deus fez por nós. Não confiamos no que fazemos ou deixamos de fazer, mas no que Deus fez por nós em Cristo Jesus.

III. O TESTEMUNHO DE PAULO ANUNCIADO (3.4-6)

1. Os privilégios de Paulo (3.4,5)
O apóstolo está fazendo um contraste entre ele e os falsos mestres que confiavam na carne. Ele está argumentando que ele teria muito mais razões para confiar na carne do que eles. E, então, passa a listar seus privilégios como judeus. Ele mostra a esses falsos mestres de plantão as suas credenciais. Ele não o faz para jactar-se, mas para mostrar que sabia o que era seu judeu e deliberadamente abandonou esses predicados por causa de Jesus Cristo. Que privilégios eram esses?

Em primeiro lugar, privilégio eclesiástico: ele era circuncidado ao oitavo dia (3.5). Ele não era um judeu prosélito; ele nasceu judeu e era um membro da raça que havia recebido o rito da circuncisão no tempo estabelecido pela lei (Gn 17.12; Lv 12.3). Com essa expressão Paulo diz que não é um descendente de Ismael que foi circuncidado aos treze naos (Gn 17.25) nem um prosélito que recebia a circuncisão depois de adulto, mas alguém que nasceu na mais pura fé judaica. Nesse sentido Paulo excedia aos judaízes.

Em segundo lugar, privilégio de nacionalidade: ele era da linhagem de Israel (3.5). Ele não era um judeu apenas por adesão religiosa, mas judeu por direito de nascimento. Só os judeus podiam traçar sua descendência até Jacó, a quem Deus havia dado o nome de Israel. Chamando a si mesmo de israelita Paulo sublinha a pureza absoluta de sua raça e de sua descendência. Paulo pertencia ao povo eleito, o povo do concerto, o povo exclusivamente privilegiado (Ex 19.5,6; Nm 23.9; Sl 147.19,20; Am 3.2l Rm 3.1,2; 9.4,5). Porventura os judaizantes podiam com justiça reivindicar tal pureza genealógica para cada um de per si?

Em terceiro lugar, privilégio ancestral: ele era da Tribo de Benjamim (3.5). Benjamim foi o único filho de Jacó que nasceu na terra prometida. A tribo de Benjamim é uma das mais importantes, pois foi a única que se manteve fiel junto com a tribo de Judá à dinastia de Davi (1Rs 12.21). Dessa tribo procedeu o primeiro rei de Israel. Assim, Paulo não só está afirmando que era israelita, mas também que pertencia à elite de Israel. Essa foi sem sombra de dúvida a nobilíssima e a mais ilustre de todas as tribos de Israel.

2. Os méritos de Paulo (3.5,6)
Até agora Paulo havia listado o que ele tinha por direito de nascimento, agora, vai listar o que adquiriu por escolha sua.

Em primeiro lugar, ele era hebreu de hebreus (3.5). Essa expressão além de enfatizar que tinha puro sangue, denota os judeus que normalmente falavam aramaico entre si, e freqüentavam sinagogas em que se celebrava o culto em hebraico (bem diferentes dos helenistas, que só falavam o grego). Paulo falava a língua hebraica (At 21.40). Embora tenha nascido na cidade pagã de Tarso, foi para Jerusalém e foi criado aos pés de Gamaliel (At 22.3). Ele não era apenas um judeu helênico, mas um judeu atrelado à mais pura tradição judaica. Ralph Martin diz, outrossim, que este argumento é apresentado como prova de sua estrita ortodoxia, não maculada por nenhuma influência estrangeira (2Co 11.22).

Em segundo lugar, quanto à lei, ele era fariseu (3.5). Os fariseus constituíam o grupo mais zeloso pela lei e tradição da religião judaica. Ralph Martin diz que a principal característica da vida de um fariseu era a reputação de ser um cuidadoso e fervoroso cumpridor da lei mosaica, e suas tradições. O próprio nome fariseu significa “separado”. William Hendriksen diz que essa facção religiosa se originou durante o período intertestamentário em reação aos excessos dos judeus negligentes e indiferentes que se imbuíram do espírito helenista em seus aspectos insípidos. Assim, os fariseus ou separatistas vieram a separar-se dessas pessoas mundanas. Os fariseus não eram patriotas como os zelotes, nem radicais como os saduceus e nem políticos como os herodianos. Sua alta consideração pela Lei de Deus é digna de admiração. Essa seita do judaísmo tinha se separado da vida comum e das tarefas comuns para consagrar suas vidas à observância minuciosa dos detalhes da Lei. William Barclay diz que embora eles não fossem muitos, eram os corifeus espirituais do judaísmo. Paulo escolheu ser fariseu (At 23.6). Tornou-se extremamente zeloso da tradição de seus pais (Gl 1.14). Como fariseu pertenceu ao segmento mais severo da religião judaica (At 26.5).

O maior equívoco dos fariseus foi dar excessivo valor ao sistema legalista de interpretação que os escribas impuseram à lei, sepultando-a sob o peso de suas tradições (Mc 7.13). Essa falsa interpretação dos fariseus levou-os a se colocarem como inimigos de Cristo. Jesus os chamou de hipócritas e presunçosos (Mt 6.2,16; 23.5-7), néscios e cegos (Mt 23.16-22), serpentes e raça de víboras (Mt 23.33), sepulcros caiados (Mt 23.13,15,23,25,27,29).

Em terceiro lugar, quanto ao zelo, ele era perseguidor da igreja (3.6). Paulo era um judeu no seu sentido pleno, pela hereditariedade, pela cultura e pela religião. Mas, mais do que isso, ele se levantou com todas as forças da sua alma para combater a igreja de Cristo. Para o judeu a maior qualidade religiosa era o zelo (Nm 25.11-13). Um zelo ardente por Deus era o emblema de honra e o distintivo da religião judia. Paulo usou esse zelo para perseguir a igreja (At 9.1,2; 22.1-5; 26.9-15; 1Co 15.9; Gl 1.13).

Em quarto lugar, quanto à justiça que há na lei, ele era irrepreensível (3.6). Essa irrepreensibilidade não era moral, mas religiosa. A palavra grega usada por Paulo, amemptos traz a idéia de “culpar por pecados de omissão”. Assim, o que ele afirma é que não existe nenhuma exigência da Lei que tenha cumprido. Ele perseguia implacavelmente a igreja por zelo às convicções da sua fé.

IV. A SUBLIMIDADE DO EVANGELHO ESTABELECIDA (3.7-11)

1. O valor do Evangelho (3.7,8)
O apóstolo Paulo contrastando sua vida no judaísmo com sua experiência com Cristo, considerou como perda o que antes lhe parecia lucro. Ele era um genuíno israelita, de nobre nascimento, ortodoxo em sua crença e escrupuloso em sua conduta. Estava pronto a dar o seu sangue e derramar o sangue dos cristãos para agradar a Deus e chegar até a ele. Essas coisas, porém que foram anotadas, uma a uma, na coluna do crédito; agora passaram para a coluna do débito, e se converteram numa gigantesca perda. William Hendriksen ilustra essa verdade, assim:

A palavra perda, a qual Paulo usa nos versos 7 e 8, e em nenhuma outra parte de suas epístolas, ocorre em apenas outra passagem no Novo Testamento (At 27.10,21), na narrativa da viagem perigosa. E é exatamente essa mesma passagem que também indica como o lucro pode se reverter em perda. A mercadoria daquele navio, que navegava para a Itália, representava lucro potencial para os mercadores, para o proprietário e para os famintos do navio. Todavia, não fosse esse trigo lançado ao mar (At 27.38), muito provavelmente não só o navio, mas também todos os tripulantes acabariam em perda. Assim também a vantagem de se ter nascido num lar cristão e de se ter recebido uma maravilhosa e cristã educação doméstica, torna-se em desvantagem quando é considerada como base sobre a qual se constrói a esperança de vida eterna. O mesmo se pode dizer com respeito ao dinheiro, ao atrativo pessoal, à cultura, ao vigor físico, etc. Tais benefícios podem se reverter em entraves. Os degraus se transformarão em objetos de tropeço se forem usados erroneamente.

Quatro verdades devem ser destacadas a respeito do valor do evangelho.
Em primeiro lugar, a Pessoa de Cristo é mais importante do que os rituais religiosos (3.7). Os judaizantes estavam se gloriando na carne e centralizando a confiança deles para a salvação num rito físico. Mas tudo isso não tem nenhum valor para a salvação. Nossa confiança deve estar em Cristo e não em rituais. Se Paulo não tivesse renunciado ao demasiado valor que atribuía a esses privilégios e empreendimentos, eles o teriam privado de Cristo, o único lucro real (3.8).

Em segundo lugar, o conhecimento de Cristo não é apenas teórico, mas, sobretudo, um relacionamento íntimo e pessoal (3.8). Paulo considera seus privilégios e méritos na religião judaica como pura perda em virtude do seu relacionamento pessoal com Cristo, o senhor da sua vida. William Hendriksen diz: “Assim como o nascer do sol apaga a luz das estrelas, e assim como a presença de uma pérola de grande valor apaga o brilho das demais gemas, assim também a comunhão com Cristo eclipsa o brilho de todas as coisas”.

Em terceiro lugar, o amor a Cristo corrige nossas prioridades (3.8). Paulo não apenas abre mão de suas prerrogativas e vantagens, mas as considera como perda por amor a Cristo. O amor de Cristo o constrangeu e seu amor por Cristo o levou a renunciar tudo o que antes lhe parecia vantajoso.

Em quarto lugar, possuir a Cristo nos leva a ver as vantagens pessoais e religiosas como refugo (3.8). A palavra grega skybala usada por Paulo usa para “refugo” tem dois significados: Em linhagem comum significa “aquilo que era arrojado aos cães”; na linguagem médica significa “excremento, esterco”. Ralph Martin chega a dizer que o termo skybala é um termo tão vulgar para descrever excremento humano, ou restos de alimento destinados à lata de lixo, que o termo “esterco” ou “refugo” não conseguem expressar toda a sua repugnância. Assim, todos os privilégios cerimoniais, religiosos, do passado, são desdenhosamente jogados de lado, como lixo. O que os judaizantes têm em tão alta conta, o apóstolo considera ser de nenhum préstimo, senão como refugo, como algo que só servia para ser lançado aos cães.

2. O conteúdo do Evangelho (3.9)

O conteúdo do evangelho não é que fazemos para Deus, mas o que Deus fez por nós em Cristo. A palavra chave aqui é justiça. A igreja é um povo que foi justificado por Deus, por causa do sacrifício perfeito e cabal de Cristo na cruz. Destacamos aqui alguns pontos importantes:

Em primeiro lugar, a justificação é uma obra de Deus (3.9). Todas as nossas justiças são como trapos de imundícia aos olhos de Deus (Is 64.6). Deus é justo e não pode contemplar o mal. Ele não inocentará o culpado. A alma que pecar, essa morrerá. A Bíblia diz que todos pecaram. Não há justo nem um sequer. Mas, Deus enviou seu Filho como nosso substituto e fiador. Ele foi à cruz em nosso lugar. Quando estava pregado no madeiro, Deus fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós. Ele foi ferido de Deus e traspassado pelas nossas iniqüidades. Antes de render o seu espírito, Jesus deu um brado: “Está consumado”. Isso significa: está pago! Nossa dívida foi paga. A justiça perfeita de Cristo foi imputada a nós, ou seja, depositada em nossa conta. Por causa dos méritos do sacrifício de Cristo, Deus nos declara justos. Agora, portanto, não há mais nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo. Essa é a justiça de Deus imputada a nós.

William Hendriksen está coberto de razão quando afirma que enquanto uma pessoa se conserva apegada à sua própria justiça, mesmo num grau ínfimo, ela jamais desfrutará da plena justiça de Cristo. As duas não podem, de modo algum, andar juntas. É necessário que uma seja plenamente renunciada antes que a outra seja plenamente possuída.

Em segundo lugar, a justificação é por meio de Cristo (3.9). Deus justifica todo aquele que está em Cristo sem justiça própria, que procede de lei. Somos justificados pelos méritos de Cristo. Foi sua obra na cruz e não nossos esforços que nos garante a justificação. “Ser achado nele e ser justificado são uma e a mesma coisa”. Warren Wiersbe corretamente diz que há somente uma “boa obra” que pode levar o pecador para o céu: a obra que Cristo consumou na cruz (Jo 7.1-4; 19.30; Hb 10.11-14).

Em terceiro lugar, a justificação é recebida pela fé (3.9). A justificação é mediante a fé em Cristo. A fé não é a sua causa, mas o seu instrumento de apropriação. A relação justa com Deus não se baseia na Lei, mas na fé em Cristo Jesus; ninguém a conquista, Deus a dá; ninguém a ganha por obras, mas a aceita com confiança. Assim, o caminho da paz com Deus não é o caminho das obras, mas o caminho da graça.

3. A comunhão do Evangelho (3.10,11)
O evangelho é mais do que um punhado de verdades e dogmas, ele é uma pessoa. Ser cristão não é apenas ter na mente as doutrinas do cristianismo, mas ter um íntimo relacionamento com Cristo. Esse conhecimento não é apenas intelectual, mas, sobretudo, uma experiência pessoal. O verbo grego kinoskein “conhecer” usado por Paulo é o mesmo verbo hebraico yadá usado para relacionamento conjugal entre Adão e Eva (Gn 4.1). O nosso relacionamento com Cristo tem pelo menos três implicações:

Em primeiro lugar, implica na apropriação do poder da vida sobre a morte (3.10). Se o amor de Deus fica demonstrado de modo supremo na morte de Cristo (Rm 5.8), o poder de Deus fica demonstrado de modo supremo na ressurreição de Cristo. Paulo diz que o mesmo poder que ressuscitou a Jesus dentro dos mortos está à nossa disposição. Não lidamos apenas com gloriosas verdades antigas, mas lidamos também com um poder sempre vivo, dinâmico e atual. William Barclay diz que a ressurreição de Cristo é garantia de que esta vida é digna de ser vivida e de que para Deus o corpo físico é sagrado; que a morte não é o fim; e que nada na vida ou na morte pode nos separar de Cristo.

Em segundo lugar, implica na capacitação para enfrentar o sofrimento e a morte (3.10). Se, num certo plano, Paulo partilhou o poder do Cristo ressurreto, noutro plano o apóstolo partilhou seus sofrimentos. Sofrer por Cristo é um privilégio (1.29). Paulo estava na prisão, aguardando a sua sentença. Ele não era um masoquista que gostava de sofrer nem um eremita que via o sofrimento como meritório. Ao contrário, por causa de sua comunhão com Cristo, ele conhecia o poder da vida e também estava pronto a enfrentar o sofrimento da morte. Sofrer pela fé não é motivo de tristeza, mas de gozo inefável.

Em terceiro lugar, implica na gloriosa expectativa da vida futura (3.11). Essa palavra de Paulo não deve ser vista como uma dúvida ou tímida esperança. Antes da ressurreição vem a morte; antes da alegria vem o choro; antes dos montes alcantilados vêm os vales.

Rev. Hernandes Dias Lopes

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